por Edgard Leite (Diretor do Instituto Realitas)
Um famoso pôster soviético, de 1975, apresenta um astronauta, em órbita da terra, afirmando: “Não existe Deus”.
A proposição, em si, é mentirosa: desde quando, para verificar se Deus existe, é necessário entrar em órbita da terra?
Mais uma vez, aqui, a imagem era mais importante que o conteúdo. A mensagem, no caso mentirosa, mais importante que sua racionalidade.
Nenhum movimento foi mais constante e intenso na história da União Soviética que a perseguição às religiões. Especialmente a Igreja Ortodoxa.
O tema era antigo e muito querido aos movimentos revolucionários do século XIX e tem suas origens no Iluminismo e na sua crítica à Igreja e à religião.
Foi na Revolução Francesa, na verdade, que o espírito anti-religioso assumiu seu perfil insano, que continuaria atuando pelos próximos séculos.
A revolução francesa não se contentou em transformar as leis sobre o assunto. Ela também agiu para destruir, fisicamente, as igrejas e perseguir, e matar, os religiosos.
A partir de 1917, os bolcheviques, crentes que o sucesso de seu regime passava pela extirpação do espírito religioso da consciência humana e acreditando que isso era possível, também se dedicaram a esse tipo de perseguição.
Sempre foi esse, de fato, um objetivo maior da União Soviética. As opiniões marxistas sobre o assunto estabeleceram, desde o século XIX, e ao nosso ver com razão, que o principal inimigo do comunismo era não apenas a Igreja, mas a religião como um todo.
A ideia de que os valores religiosos eram hostis ao estabelecimento de uma ordem que objetivava transformar a natureza e a sociedade humanas possuía todo sentido.
De fato, as tradições judaicas e cristãs não poderiam jamais conviver com um modelo político que colocasse o homem no lugar de Deus. Que colocasse as questões superficiais da condição humana no mesmo patamar que as grandes questões espirituais que remetem o ser ao mistério do mundo.
Ou que arrogasse para o ser humano uma potência impossível diante do enigma das coisas.
A questão, ia, de fato, muito além das disputas pelo poder político.
Para a tradição revolucionária era necessário que os seres humanos não fossem mais capazes de distinguir entre o sagrado e o profano, entre a verdade e a mentira, entre o eterno e o transitório
Dessa maneira, poderia entrar em cena uma ordem cirúrgica que pudesse, assim acreditavam, moldar as consciências de acordo com a utopia.
A necessidade de extirpar, dentro dos homens, a capacidade de decidir e de escolher, fundamento da moralidade e da boa existência, exigia construir um ser que negasse sua própria condição de ser paradoxal, que convive com o bem e o mal dentro de sua consciência.
Era imprescindível que não se vissem mais como seres humanos, mas como seres integralmente bons, segundo os parâmetros dos utopistas. O “homem novo”, diziam os comunistas.
Donde a violência contínua contra a tradição que ensinava a capacidade humana de escolher entre o bem e o mal, a partir do que tinha dentro de si e daquilo que podia observar no mundo, por olhos meditativos.
Ou guiado por princípios que tinham origem numa dimensão invisível do mundo.
Ocorreram, pelo menos, na União Soviética, cinco grandes ondas de perseguição religiosa: as de 1917-1921, 1921-1928, 1928-1941, 1958-1964, e, finalmente, a de 1970-1990. O Estado soviético foi, desde o princípio, não laico, mas sim ateu. De um ateísmo militante.
O primeiro ato do regime nessa direção foi tomar conta de toda educação na sociedade socialista e proibir o ensino religioso. Depois, suspender qualquer subsídio às religiões. Por fim, confiscar, para o Estado, as propriedades religiosas (1918).
A partir daí processou-se, ao longo do século XX, todo tipo de atrocidades contra líderes e comunidades religiosas e ações deliberadas de destruição de igrejas e templos e confisco de propriedades.
Tudo isso seguido de prisão e execução de líderes religiosos e fiéis. Instalando o terror entre todos aqueles que tinham a necessidade do espírito.
O direito do Estado promover campanhas antirreligiosas foi estabelecido nas constituições soviéticas. E como acreditavam que, através da educação, poderiam mudar a consciência das presentes e futuras gerações, dedicaram-se ao proselitismo antirreligioso nas instituições escolares.
Antonio Gramsci (1891-1937), que viveu as ilusões nessa época, e acreditava nessas mentiras, sustentou que um trabalho nessa direção poderia, no futuro, eliminar o sentimento religioso da consciência humana.
Os bolcheviques sempre estimularam dissensões internas dentro da Igreja Ortodoxa e dos movimentos religiosos. Principalmente, a partir de determinado momento, pela difusão de uma visão, diríamos assim, social, da Biblia.
Tal tipo de abordagem foi sustentado por Norman Gottwald nos anos 50. Afirmando o caráter "revolucionário" das tribos de Israel ao se estabelecerem em Israel, na época de Josué. Ganhou repercussão com a sentença, de autoria desconhecida mas de origem presumida, amplamente espalhada, de que Jesus foi o "primeiro comunista”.
Esta mentira, pois o comunismo não tem sua origem no pensamento neo-testamentário, mas, ao contrário, num pensamento que se volta contra a tradição cristã, causou, como todas as mentiras, muita confusão entre os fiéis.
Mas mostra como a União Soviética serviu de modelo e inspiração, nessa área, para uma série de ações antirreligiosas.
Em 1991, a União Soviética acabou. Em 1993, o Soviete Supremo foi dissolvido.
Templos foram reconstruídos, e a Igreja ortodoxa escolheu seus mártires e santos. Entre eles a família Romanoff, assassinada sem processo e de forma cruel no momento mesmo da fundação do Estado soviético.
Ao receber o prêmio Templeton, em 1983, disse Aleksander Solzhenitsyn:
“Há mais de meio século, quando ainda era criança, lembro-me de ouvir várias pessoas mais velhas oferecerem a seguinte explicação para os grandes desastres que se abateram sobre a Rússia: 'Os homens se esqueceram de Deus, é por isso que isso tudo aconteceu’.
Mas, se hoje me pedissem para formular de maneira tão concisa quanto possível a causa principal da revolução destruidora que engoliu cerca de sessenta milhões de pessoas de nosso povo, não poderia dizer com mais exatidão do que repetir: 'Os homens se esqueceram de Deus, é por isso que tudo isso aconteceu’"
Um mundo sem religião é um deserto. Porque esse mundo efêmero jamais pode dar ao ser uma satisfação real ou absoluta. Ir além dele é caminho que sempre foi visto como necessário para realizar aquilo que somos.
Além do mais, onde não existe Deus não existe humanidade. Porque tudo que o ser humano faz de mais sincero e verdadeiro tem a ver com essa relação misteriosa com o enigma invisível da existência.
Assim, aquele regime que durou três gerações, fatalmente seria derrubado. O ser humano é mais forte que as ideias suicidas que ele mesmo possa ter sobre seu destino.
Basicamente porque está enraizado não nesse mundo. Mas em uma realidade maior que o mundo.
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