por Edgard Leite
O Padre Gabriel Malagrida S.J. (1689-1761) foi um sacerdote jesuíta. De origem italiana, viveu no Brasil durante muitos anos.
Como missionário, atuou junto aos índios. Andou por lugares distantes da Amazônia, em condições precárias, pregando a palavra de Deus em tribos remotas.
Realizou missões memoráveis junto às populações brasileiras do sertão do nordeste. Era tido e havido como grande pregador, usualmente clamando, com sucesso, pelo arrependimento e pela conversão.
Seus feitos ficaram vivos na memória popular. Em 1908, o médium Zélio Fernandino de Morais, fundador da Umbanda, reconheceu a liderança espiritual do Caboclo das Sete Encruzilhadas, que foi tido exatamente como uma reencarnação de Gabriel Malagrida.
Era um místico. Entendia-se próximo a Deus. Íntimo da sabedoria e entendimento que vinha da Sua presença. Sua trajetória, no Brasil, está repleta de relatos de experiências místicas e milagres.
Era, também por isso, figura respeitada na corte portuguesa. Acompanhou o Rei D. João V (1689- 1750), em seu leito de morte. Sua presença na família real era sempre bem-vinda.
Mas Malagrida viveu numa época muito conturbada. No seu tempo, alguns defendiam que os valores, ou Deus, não deveriam nortear os pensamentos e as ações humanas. Avançava-se na tese da secularização do Estado e da sociedade.
Inclinavam-se muitos pela ideia, Iluminista, de que a razão humana, os objetivos materiais, os Direitos, eram mais importantes que os valores, o Espírito, a imprecisão conceitual da subjetividade.
Do ponto de vista político, crescia a tendência em pensar que a religião deveria ser afastada da política, do espaço público. Que os poderes de Estado não deveriam se preocupar com o destino espiritual das pessoas.
As implicações disso eram muitas. Mas cabe dizer, no momento, que, para Malagrida, isso representava a luta contra a ordem religiosa à qual pertencia, a dos jesuítas, a Companhia de Jesus.
A expulsão da Companhia de Jesus do Brasil foi uma das grandes tragédias morais da nossa história e, em grande medida, ainda padecemos dos seus efeitos.
Malagrida viveu esses momentos com grande intensidade interior e imenso sentimento religioso. Via ali sinais de um mundo, o nosso, que ia aos poucos se delineando no horizonte. Este mundo lhe causava calafrios, pelo terror hedonista, materialista e satânico que percebia ser sua característica básica.
As ações do Marquês do Pombal (1699-1782) foram norteadas no sentido de eliminar a influência religiosa jesuítica na sociedade portuguesa e nas universidades.
Foi o primeiro grande combate trágico, nesse campo, que teve lugar na Europa. Foi brutal e violento e (como será comum acontecer depois nas sociedades iluministas), em nome do humano, Pombal atacou sistematicamente o humano.
Malagrida estava em Portugal no meio dessa crise. Lá presenciou o grande terremoto de 1755.
O evento ocorreu no dia de Todos os Santos, 1 de novembro. E destruiu quase que totalmente a cidade de Lisboa.
Muitos, como o Marquês de Pombal e seus associados, se recusaram a admitir que existia qualquer relação entre o avanço das políticas antirreligiosas e o terremoto. Pombal sustentou que o acontecimento tinha “causas naturais” e era devido ao acaso.
Malagrida, no entanto, de forma muito circunspecta, escreveu um texto reflexivo, chamado Juízo da verdadeira causa do Terremoto que padeceu a corte de Lisboa no primeiro de novembro de 1755.
Neste afirmou que “não sei como se possa atrever um sujeito católico a atribuir unicamente a causas e contingências naturais a presente calamidade deste tão trágico terremoto? Não sabem estes católicos que este mundo não é uma casa sem dono? Não sabem que há providência em Deus?”
Ou seja, defendeu Malagrida que o universo não estava entregue ao acaso. Tudo que ocorria estava interligado a um plano, a uma ordem. E as causas das coisas não se limitavam às causas visíveis.
Essa crítica à limitação do mundo secular e à sua ciência partia, em grande parte, da sua convicção de que muitas forças atuam sobre a realidade. Os homens conhecem apenas algumas. Mas não é sensato achar que essas algumas expliquem tudo.
O atentado contra o Rei D. José I (1714-1777) serviu de pretexto para sua prisão, em janeiro de 1759, e seu julgamento, por um Tribunal do Santo Ofício controlado politicamente por Pombal.
Na prisão, Malagrida teve visões. Um empregado, certo dia, “viu-o de pé em meio à cela, o rosto voltado para a janela, perguntando: ‘Quem me chama? Quem fala comigo?’ ”
Por conta desses transes místicos, Malagrida escreveu, entre outros textos, o Vida e Império do Anticristo.
Em seu livro, Malagrida narra sua visão de acontecimentos que teriam lugar em princípios do século XXI. O Anticristo, segundo entendeu, nasceria em 1999.
Para o jesuíta, a narrativa sobre o Anticristo do futuro era uma forma de expor como entendia a situação da sociedade dali a duzentos anos. Pois não tinha dúvidas de que o que estava iniciando em sua época era uma tendência que se generalizaria e tomaria o mundo todo.
Primeiro, ele afirma que o Anticristo não teria uma religião definida: “Nunca experimentará algo bom e divino”. O Iluminismo retirará dos homens o sentimento de bondade e a proximidade de Deus.
Moverá “guerra sacrílega contra a religião”, “os cristãos, em lugar de resistir com força e sofrer a morte … fugirão espantados de medo…”.
E numa visão de uma sociedade moralmente degrada, afirmou que o Anticristo, isto é, o espírito laicizante, “transformará templos em estábulos de cavalos e outros arrasará ao solo”.
“Substituirá” Deus e santos “com novos altares e retratos aquelas antigas divindades falsas dos pagãos”. Num lugar sagrado “será colocada uma Venus desnuda e a mais impudica, cercada por muitos lascivos concupiscentes e um coro de provocadores de toda lascívia”. A desagregação moral, assim, conduzirá a sociedade ao colapso.
E, principalmente, “misturará sempre direitos e costumes… afirmando que todas as leis estavam certas e eram úteis para a salvação”.
No pluralismo e na liberdade religiosa, que lhe parecia certo advir, embora não houvesse nem sinal disso no século XVIII, entendia Malagrida que estava o cerne do poder do Anticristo: onde há muitas verdades, não há nenhuma.
O Anticristo, portanto, para Malagrida, é a representação do mundo em construção no seu tempo. Uma sociedade sem valores, sem Deus, sem Verdade.
Malagrida não pode terminar seu texto. Os manuscritos lhe foram tomados, na primeira semana de 1760. Em 17 de janeiro de 1761 foi levado para o cárcere da Inquisição, sob a acusação de heresia. Em 21 de setembro de 1761 foi garroteado e seu corpo queimado, no Largo do Rocio, em Lisboa.
A sua visão, no entanto, de um mundo amorfo, desprovido de sentidos, sem valores, e voltado apenas para o hedonismo e para a transitoriedade, fazia todo sentido.
No limiar do mundo contemporâneo, Malagrida nos viu.
(Edgard Leite é Diretor do Instituto Realitas)