O mistério das revoluções
- Edgard Leite Ferreira Neto
- há 2 dias
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Durante muitas décadas, no princípio do século XX, nos manuais escolares brasileiros, só havia uma revolução digna de tal nome: a chamada “Revolução de 7 de abril de 1831”. A Antologia Nacional, coleção de Excertos, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, leitura obrigatória no Colégio Pedro II, na Escola Normal, no Colégio Militar e em outros estabelecimentos de ensino no país, ostentou por inúmeras edições, desde 1895, a descrição desse evento, pela transcrição de um texto de João Manoel Pereira da Silva.
O termo revolução possui origem astrológica ou astronômica, e designa o movimento circular, ou cíclico, dos planetas e das estrelas. Está presente no título do livro de Nicolau Copérnico, De revolutionibus orbium celestium, Das revoluções das esferas celestes. Reinhart Koselleck chamou a atenção para essa particularidade do conceito, que acabou por ser utilizado como indicador de um movimento histórico, ao mesmo tempo singular e repetitivo.
No caso de 1831, no Brasil, cabem algumas observações: é evidente que o movimento evocava, ou pretendia repetir, a natureza das revoluções de 1830 na Europa. Estas foram caracterizadas pela rejeição de poderes autocráticos, restaurados no continente após a derrota de Napoleão. Não podia ser diferente no Brasil, onde o Imperador, embora fosse liberal e constitucionalista, era entendido como autocrata.
Mas o que nos interessa é, da mesma maneira que para Koselleck, a natureza do movimento: no dia 6 de abril de 1831, o Imperador alterou seu ministério, tido por “brasileiro” e liberal, e nomeou um seu próprio, considerado “português” e absolutista. Parte da população do Rio de Janeiro, vendo nesse movimento algo que lhe contrariava interesses, nacionais, econômicos e políticos, dirigiu-se imediatamente, de manhã, ao Campo de Santana, para protestar e exigir a destituição do gabinete.
Por volta das 15h, veio encontrar o povo o Juiz de Paz de Santana que, a pedido da população, logo dirigiu-se ao Brigadeiro Francisco de Lima e Silva, senador e líder militar. Este, por sua vez, encaminhou o Major Miguel de Frias para levar ao soberano a reivindicação do povo reunido. O Imperador, através do Major, dirigiu por escrito sua resposta, onde explicava seus direitos constitucionais e pedia ao povo "união e tranquilidade”. O texto, após ser lido ao povo rebelado, foi arrancado da mão de quem o leu e rasgado, sob aplausos generalizados.
Por volta das 19h não um, apenas, mas sim três juízes de paz dirigiram-se novamente ao Paço para pedir a destituição do ministério. O Imperador exasperou-se. Declarou seu compromisso com a Constituição, mas deixou claro que tudo faria “para o povo, nada porém pelo povo”. Isto é, nada faria apenas porque o povo desejasse algo. A situação ficou bem mais grave.
Às 21h quem apareceu diante do Imperador foi o próprio brigadeiro Francisco de Lima e Silva, que lhe comunicou que as tropas estavam rebeladas, inclusive a guarda pessoal do Imperador. O ultimato pela demissão do ministério lhe foi entregue. D. Pedro ainda tentou encontrar políticos que o apoiassem, mas em vão. O brigadeiro lhe confirmou o motim militar por volta das 2 da madrugada.
Já decidido, e tendo ouvido o corpo diplomático, o imperador redigiu não a demissão do ministério, mas sim, para surpresa de todos, sua abdicação do cargo de Imperador do Brasil: “aqui tem a minha abdicação, estimo que sejam felizes”. Imediatamente retirou-se do palácio e do país. Afastando-se o Imperador, no mesmo dia o senado elegeu a chamada Regência trina provisória, composta pelos senadores José Joaquim Carneiro de Campos, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro e, é claro, Francisco de Lima e Silva
Para Koselleck o conceito de revolução contém em si uma interação entre singularidade e repetição. E, igualmente, uma percepção sobre a natureza de um processo que ocorre de forma recorrente na história.
"O conceito de revolução”, sustenta Koselleck, "contém padrões de comportamento familiares: covardia, coragem, medo, esperança, o uso do terror por ansiedade ou por desprezo, a formação de partidos e de facções dentro do processo, a rivalidade entre líderes, a capacidade de aclamação das massas, bem como a sua própria necessidade de aclamação. [As revoluções] são únicas nas suas ocorrências individuais, mas as suas estruturas formais revelam sempre elementos recorrentes. Em outras palavras, a história contém sempre repetições - metaforicamente falando, revoluções - em que ocorrem conjuntamente mudanças únicas e a recorrência dos mesmos fenômenos ou de fenômenos semelhantes (ou pelo menos comparáveis)"
Continua Koselleck explicando que
"O conceito inclui o exercício da violência extralegal que, em caso de sucesso, se traduz em uma mudança nas práticas de governança ou nas formas constitucionais, uma rotatividade das elites (mas, na maior parte das vezes, apenas parcial) e uma mudança na propriedade, expropriação e redistribuição dos ganhos, provocada pela insurreição".
Parece correto, portanto, a levar em conta Koselleck, o entendimento de que 1831 foi uma revolução, porque os elementos por ele expostos estavam todos presentes naquele dia. O período da independência, 1822-1824 pode, de forma evidente, ser classificado como tal. Embora tudo indique que em 1831 alcançou-se seu definitivo fecho, com a passagem do poder aos brasileiros. Teríamos assim uma revolução que começa em 1822 e termina em 1831. Já outros movimentos de rebelião do período colonial, regencial ou no segundo reinado, não configuraram propriamente revoluções, segundo seus critérios, pois faltava a mudança, mesmo que parcial, do poder dirigente. A não ser que consideremos, é claro, que mesmo numa derrota ocorram mudanças em poderes.
Em 1889, na deposição do Império, está, de forma aparente, ausente o que Koselleck denominou da "aclamação das massas”, um clamor popular específico ou generalizado e amplamente reconhecido. Esse fator sempre inibiu a ideia de que 1889 foi de fato uma revolução. Mas houve quem apoiasse, mesmo que silenciosamente, e houve mudança. No entanto, não tiveram dúvidas os contemporâneos, ao vivenciar a crise final do governo Washington Luiz, de que em 1930 ocorreu uma revolução, cem anos depois daquela que levou à abdicação de D. Pedro I. Ali ocorreu o levante popular, a turbulência política e militar e, por fim, o ultimato, com a queda do regime e a entrada em cena de novos protagonistas.
Mas o que nos interessa, aqui, é o mistério da repetição. Embora o conceito revolução aplicado às transições políticas tenha surgido a partir do Iluminismo, é evidente que esse fenômeno político não se resume às demandas democráticas da modernidade. A agitação de setores sociais, o enfrentamento de um poder, a deposição dos poderosos do momento e a sua substituição por outros é fenômeno recorrente na existência das sociedades. Como escreveu Paulo Orósio, no século V, "qualquer coisa que é feita pela mão e pelo trabalho do homem colapsa e é consumida pela passagem do tempo”. Assim, da mesma forma que tal revolução ocorreu, outras ocorreram depois e ocorrerão no futuro.
Há aqui um mistério, portanto: a contínua ruína das estruturas políticas é uma experiência repetitiva, como toda desagregação das coisas no mundo. Do ponto de vista da história o tema é perturbador: é inquietante perceber como as crenças políticas, tão intensas e capazes de mover as pessoas, estão também condenadas ao desaparecimento contínuo.
Esse movimento é como o movimento dos astros, que vêm e vão, e repetem suas posições? É sim, em determinado sentido, porque é comum, na política, buscar sempre recomeçar e novamente retomar esperanças sobre processos que, aqui, sempre se esgotam. A angústia dessa prisão no retorno infinito das revoluções atormenta o Homem pois, nestas, a expectativa humana está sempre aprisionada. E nunca há, nelas, termo. Apenas um permanente recomeço. 1831, 1889, 1930.
É também possível que esse movimento traduza, no mundo, ações internas, da consciência humana, de contínua reação diante das crenças que ordenam de forma precária coisas transitórias. E, por tais ações, estejamos sempre em sintonia com transformações (revolucionárias) ao longo do tempo. E, exatamente por isso, em tais transformações se expressam ansiedades contínuas, que almejam nos livrar dessas recorrências infinitas (sociais, políticas, mas também íntimas) que nos demonstram nossa impotência diante do mundo.
Podemos sustentar que somente o vislumbre da eternidade nos permite a liberdade diante do mistério aprisionador das revoluções? Assim entendemos, pois a insistência na transformação exclusiva a partir dos elementos transitórios é vivência permanente da incompletude. Nada há, em tal transformação, que nos possa redimir de um eterno retorno. Ela apenas nos retém em nossas próprias fantasias e nos afasta da vivência de uma dimensão que não tem tempo - que está além do ciclo dos planetas e da repetição das ilusões revolucionárias.
KOSELLECK, Reinhart: The practice of conceptual history. timing History, spacing concepts. Stanford University Press, 2002. pp.136-137
LAET, Carlos de et BARRETO, Fausto: Anthologia Nacional, collecção de excerptos. Rio de Janeiro, Francisco ALves, 1913. pp. 40-52
OROSIUS, Paulus: The Seven Books of History against the Pagans. Washington, The Catholic University of America Press, 1964. p.54
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